Em Kiribati, no Oceano Pacífico, o governo prepara a inteira população para uma evacuação total. |
No artigo precedente (“Degelo e elevação do nível do mar”, Jornal da Unicamp, 16/VII/2017), reportei o montante da elevação média global do nível do mar ocorrida no século XX (19 cm entre 1901 e 2010) e propus um quadro sintético das diversas projeções dessa elevação para o século XXI. Trata-se agora de vislumbrar alguns de seus efeitos no século XXI. Evidentemente, se vier a se verificar a projeção de uma elevação de “vários metros” (several meters) entre 2065 e 2165, sugerida por James Hansen e 18 coautores num trabalho de 2016 [III], pouco restará já neste século do que entendemos habitualmente por civilização contemporânea. Dada a altíssima credibilidade científica dos autores, essa projeção não pode ser menosprezada. Mas é preferível se ater aqui à base mais extensa do atual consenso científico, isto é, à faixa compreendida entre os cenários intermediários baixo e alto, projetada em 2012 pela National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA). Essa projeção é pouco discrepante, de resto, das demais estimativas já discutidas [IV]. Ela situa a elevação média global do nível do mar até 2100 entre 50 cm e 1,2 metro em relação a 1992, conforme mostra a figura 1
Figura 1 |
1. Inundações recorrentes da infraestrutura urbana
Entre as 20 mais populosas cidades do mundo, 13 são portos marítimos ou fluviais em zona costeira. Dado que o volume do comércio marítimo internacional triplicou em 30 anos (UNCTAD, 2008), tem-se uma primeira ideia de quanto o capitalismo globalizado depende da funcionalidade desses e de outros grandes portos. Em 2011, um trabalho coordenado por Susan Hanson identificou as 136 cidades portuárias acima de 1 milhão de pessoas mais expostas aos impactos da elevação do nível do mar e de extremos climáticos até os anos 2070 [v]. Dessas 136 cidades, 52 estão na Ásia, 17 nos EUA, 14 na América do Sul, das quais 10 no Brasil, conforme mostra a figura 2.
Figura 2 |
Quantos serão os refugiados climáticos já no segundo quarto do século? O termo refugiados climáticos, cunhado por Lester Brown nos anos 1970, abrange várias categorias de sinistrados pelas mudanças climáticas: elevação do nível do mar, mas também fome, escassez hídrica, calor letal, eventos metereológicos extremos etc. Segundo a International Organization for Migration (IOM), as estimativas globais para 2050, extremamente díspares, vão de 25 milhões a 1 bilhão de pessoas, sendo 200 milhões a figura mais comumente citada [VII]. A CARE Danmark, por exemplo, avalia que “apenas em 2015, desastres relacionados ao clima deslocaram 14,7 milhões de pessoas. E “já em 2025, até 2,4 bilhões de pessoas no mundo podem estar vivendo em áreas sujeitas a escassez hídrica intensa, a qual pode deslocar algo como 700 milhões de pessoas por volta de 2030” [VIII].
Quantos desses refugiados climáticos serão expulsos de seus lares especificamente por causa da elevação do nível do mar neste século é mais incerto. A cada ano a Holanda e a Alemanha gastam 250 milhões de euros em defesa de seus litorais. Segundo um estudo coordenado por Fabrizio Antonioli, em 2100 o nível do Adriático setentrional estará 140 cm acima do nível atual, de modo que a Itália perderá 283 km de seu litoral entre Trieste e Ravenna, incluindo Veneza [IX]. Se isso deve ocorrer na Itália, o que dizer, então, de países pobres como o Brasil, mais indefesos ainda? Vimos acima que, segundo Susan Hanson e colegas (2011), a população exposta a inundações atingirá 148 milhões de pessoas em 2070. Um trabalho apresentado no World Economic Forum de 2015 mostra os montantes populacionais afetados, em função de um aumento de 2º C e 4º C na temperatura média superficial do planeta [X]. Os resultados são sintetizados na figura 3.
Figura 3 |
A soma desses refugiados climáticos por efeito da elevação do nível do mar apenas nesses dez países variará de 166 a 418 milhões, segundo a intensidade do aquecimento global. Prevê-se, hoje, um aquecimento médio global de +2º C em relação às médias pré-industriais até meados do século e +4º C até o seu final. Por certo, a água se aquece muito mais lentamente que a atmosfera e, portanto, não é provável que o número de refugiados climáticos desses 10 países atinja em breve essas cifras apenas por efeito da elevação do nível do mar. Mas no Brasil, as cidades costeiras serão duramente atingidas já neste século [XI].
2. Desaparecimento das pequenas ilhas
Em todo o caso, nos próximos 50 anos o oceano pode varrer do mapa algumas das 52 nações localizadas em pequenas ilhas, as chamadas SIDS (Small Island Developing States), onde se concentram quase 1% da humanidade e uma ainda enorme biodiversidade. Shamshad Akhtar, secretária-executiva da Comissão Socioeconômica da ONU para a Ásia e o Pacífico (UNESCAP), afirma que a elevação do nível do mar representa para essas ilhas “a mais grave das ameaças para a sua sobrevivência e viabilidade, incluindo para algumas a perda total de seu território” [XII]. Sobretudo os atóis (ilhas coralinas) estão condenados. No Oceano Índico, boa parte das ilhas Maldivas, com seus 329 mil habitantes vivendo entre menos de 1 metro e 2 metros acima do nível do mar, deve desaparecer até meados do século. E um grupo de pesquisadores do CNRS, na França, projeta que entre 5% e 12% das 1.269 ilhas francesas devem desaparecer num futuro próximo, ameaçando de extinção cerca de 300 espécies endêmicas [XIII].
No Pacífico, prevê-se o desaparecimento de ilhas da Micronésia e da Polinésia, como Tuvalu, Quiribati e as Ilhas Marshall, com uma população total, apenas nesses três arquipélagos, de 180 mil habitantes. Com a elevação do nível do mar, resíduos radioativos, armazenados desde 1979 numa casamata chamada Runit Dome (nas Ilhas Marshall), ficarão submersos, o que os levará a vazar no oceano, através das crescentes rachaduras do concreto. De acordo com um relatório de 2013 do Departamento de Energia dos EUA, “o solo ao redor da cúpula já é mais contaminado que o seu conteúdo” [XIV]. Esses resíduos correspondem a 30 toneladas de Plutônio-239, com uma meia-vida de 24 mil anos, lá deixadas pelos norte-americanos após as “67 detonações nucleares nas ilhas da Micronésia ocorridas entre 1946 e 1958 – uma carga explosiva equivalente a 1,6 bomba de Hiroshima detonada todos os dias ao longo de 12 anos”[XV]. Michael Gerrard, do Sabin Center for Climate Change Law, na Columbia University, que visitou essa casamata em 2010, declarou [XVI]: “Runit Dome representa uma trágica confluência de testes nucleares e mudanças climáticas. Ele é o resultado dos testes nucleares norte-americanos e do abandono de grandes quantidades de plutônio. Agora, ele começou a submergir em consequência da elevação do nível do mar ocasionado pelas emissões de gases de efeito estufa por países industriais liderados pelos Estados Unidos”.
Se acrescentarmos aos impactos acima descritos outros efeitos da elevação do nível do mar, como a salinização dos solos e da água doce (superficial e subterrânea) próxima ao litoral, a destruição dos ecossistemas litorâneos (20% dos mangues já se perderam entre 1980 e 2005 [XVII]), além da crescente vulnerabilidade das usinas nucleares, podemos começar a fazer uma ideia do mundo que a máquina de acumulação de capital a que chamamos capitalismo e nossa concepção antropocêntrica do mundo, que é em última instância seu sustentáculo ideológico, estão legando aos nossos filhos e à vida no planeta.